Uma visão psicanalítica sobre a Bulimia
- Fernanda Gambera
- 17 de nov. de 2020
- 8 min de leitura

Eu não como de maneira regular. Às vezes, sou dominada por um estado de espírito estranho que me leva a comer muito, estado que considero o estado de decadência de um ser humano que soçobrou moralmente. Quando começo a comer muito, um pessimismo, um profundo desespero, uma indiferença embotada, uma completa abulia sem desejo e sem alegria tomam conta de mim. Então eu não trabalho, fico completamente embrutecida e muito mole. Como e durmo muito, quase o dia todo. Depois engordo uma enormidade, como se estivesse inchada, como se tivesse um edema. Minha aparência exterior muda, e fico com outra cara. Não quero me vestir, posso pôr roupas velhas e sujas, de preferência um robe velho; não me penteio mais e me lavo pouco. Em meu quarto reina nesse momento uma desordem horrorosa e, bagunçados, peças íntimas, roupas, livros e objetos diversos cobrem o chão em um caos total. Quando me encontro nesse estado, comer torna-se para mim uma paixão invencível que não posso combater. Doces e bolos secos exercem, então, sobre mim uma atração tão forte que eu me comparo a uma alcoolista ou drogada. (BRUSSET, 2003).
A bulimia se caracteriza pela perda do controle sobre a função alimentar, levando o paciente a devorar os alimentos a qualquer hora do dia ou da noite, mesmo sem o estímulo da fome. O que em outras áreas se chama “distúrbio”, a psicanálise nomeia de “sintoma”.
Neste sintoma, o sofrimento é expresso por meio do corpo através do ato, que nos permite supor a existência de uma precariedade dos mecanismos de elaboração psíquica do sujeito em questão. A comida se mostra como objeto da compulsão, de modo mortífero, pela voracidade. É estabelecido um gozo sobre o alimento e instaurada uma obediência ao laço feito com ele. Além do sofrimento psíquico causado por este corpo fora de controle e entregue a voracidade, o sujeito vive em intensa culpabilidade.
O caráter brusco e compulsivo da crise bulímica demanda uma análise da singularidade da economia pulsional deste sujeito, ao qual observamos a tendência à repetição, desorganização do ego e um recurso ao agir, indicativo de deslocamento do registro psíquico interno para o exterior. O sofrimento passa a ser expressado pela via do corpo e do ato. Estes aspectos nos remetem a uma violência psíquica e dimensão de trauma.
Segundo Freud (1920), o trauma seria consequência do excesso de excitação. Diante deste trauma, há uma falha no processo de elaboração psíquica e, com ele, o domínio do princípio do prazer, pois o fluxo de excitação estaria além do tolerável, fazendo com que o psiquismo promova a tarefa de “dominar” tal excitação. O excessivo para o aparelho psíquico não viria apenas do exterior, mas também de dentro do próprio sujeito, de seu universo pulsional.
A pulsão está situada na fronteira entre o somático e o psíquico e é uma medida de trabalho constante do psiquismo. Tendo ela surgido, não poderá ser destruída nem anulada, pois, está o tempo todo pressionando o aparelho psíquico para fazer ligações. O aparelho psíquico, por sua vez, tem como função dominar, capturar, regular e dar sentidos possíveis para esta pulsão.
Uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da consciência e mesmo no inconsciente ela só se dá pelos seus representantes: ideativo e afetivo. No entanto, a censura implica sempre uma modificação da pulsão. E assim, os destinos da pulsão são apresentados como modalidades de defesa, que irão atuar sobre os representantes psíquicos da pulsão.
O objetivo da pulsão é sempre a satisfação. Em termos econômicos, esta satisfação é obtida pela descarga de energia acumulada, regida pelo princípio de constância. No entanto, a pulsão como força visa a descarga instantânea, sem mediação, inviabilizando a construção de um circuito pulsional e, consequentemente, que o prazer seja obtido por meio dos objetos. O circuito pulsional é fundamental para que o psiquismo seja constituído e, através da entrada da pulsão no campo da representação, será possibilitada a passagem do ‘além’ do princípio do prazer para o registro econômico do princípio do prazer.
É possível verificar que, mesmo no sintoma bulímico vivido como intenso desprazer - exemplificado nos relatos dos desdobramentos causados pelas crises - existem momentos em que este desprazer é também experienciado como prazer. Com isso, Freud introduz em seu artigo “O problema econômico do masoquismo” (1924), o conceito de masoquismo primário (erógeno), no qual haveria uma relação entre o princípio do prazer com a pulsão de vida e a pulsão de morte.
Nesse artigo, Freud (1924) questiona como uma pulsão de morte pode derivar de uma pulsão de auto-conservação, pois se os processos mentais são regidos pelo princípio de prazer de modo tal que o primeiro objetivo é a evitação do desprazer e a obtenção de prazer, o caminhar em direção à morte é incompreensível. E explica:
Todo desprazer deve assim coincidir com uma elevação e todo prazer com um rebaixamento da tensão mental devida ao estímulo; o princípio de Nirvana (e o princípio de prazer, que lhe é supostamente idêntico) estaria inteiramente a serviço das pulsões de morte, cujo objetivo é conduzir a inquietação da vida para a estabilidade do estado inorgânico, e teria a função de fornecer advertências contra as exigências das pulsões de vida — a libido — que tentam perturbar o curso pretendido da vida. Tal visão, porém, não pode ser correta. Parece que na série de sensações de tensão temos um sentido imediato do aumento e diminuição das quantidades de estímulo, e não se pode duvidar que há tensões prazerosas e relaxamentos desprazerosos de tensão.
Isso obrigou Freud a concluir que há um fator qualitativo - além do fator quantitativo - na dinâmica do prazer. No começo da vida mental, a luta pelo prazer era muito mais intensa que mais tarde, mas não tão irrestrita: passava por constantes interrupções. Depois, o domínio sobre como obter prazer se tornou muito mais fácil e seguro, mas o princípio do prazer ainda continuava sendo influenciado pelos resquícios do passado, por traumas ocorridos num período em que o ego estava frágil e desprotegido. E o comer, enquanto necessidade e desejo, assumiu um vínculo ímpar com a dinâmica pulsional.
Quando a pulsão não encontra uma representação, uma das possibilidades do ego tentar dominá-la é a repetição compulsiva da experiência traumática sofrida. Tal experiência é repetida ativamente de forma de se busque uma preparação que não foi feita no instante do trauma, posto que o ego estava despreparado. Sem que haja simbolização, não há recalcamento, colocando em cena a compulsão à repetição.
A bulímica, é dominada pela pulsão que a leva a um estado de não reconhecimento de seu próprio corpo e comportamento. O ego parece não conseguir se apropriar desse corpo, tornando-o seu; torna-se, então, um corpo estranho. Com a instituição de uma força pulsional excessiva – emergência da pulsão de morte – é um corpo habitado pelo excesso pulsional.
Muitas de minhas pacientes com distúrbios alimentares, globus hystericus, constricção na garganta e vômitos foram, na infância, firmes adeptas do chuchar. No chuchar ou sugar com deleite já podemos observar as três características essenciais de uma manifestação sexual infantil. Esta nasce apoiando-se numa das funções somáticas vitais, ainda não conhece nenhum objeto sexual, sendo auto-erótica, e seu alvo sexual acha-se sob o domínio de uma zona erógena. Antecipemos que essas características são válidas também para a maioria das outras atividades das pulsões sexuais infantis. (Freud, 1905)
Em “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), Freud descreve a proximidade entre a pulsão sexual e funções corporais fundamentais à conservação da vida. Tal fato é exemplificado através do sugar do seio que, além de ser uma fonte de alimento, se torna grande fonte de prazer. Desta forma, a satisfação da zona erógena está, à princípio, estreitamente associada à satisfação da necessidade de alimento.
Na organização pré-genital oral, a atividade sexual ainda não se separou da nutrição e, portanto, o objeto de uma é também o de outra, e o sexual consiste na incorporação do objeto. Freud também ilustra com o chuchar, onde a atividade sexual está desligada da alimentação e há uma renúncia do objeto alheio em troca de um localizado no próprio corpo.
O fato de a zona labial ser patrimônio comum de duas funções, é a razão pela qual a ingestão de alimentos gera uma satisfação sexual. Esse mesmo fator nos permite compreender que haja distúrbios na nutrição quando as funções erógenas da zona comum são perturbadas.
É então que o indivíduo se encontra submergido em uma tendência regressiva em que a pulsão está submetida na bulimia. Este desvio passa a afetar sua busca por satisfação, ao passo que a reivindicação pulsional estará direcionada para o alimento. Deixará assim, de seguir o caminho da pulsão na busca por um objeto qualquer, sempre por um novo caminho, para prender-se a um regime no qual se exige sempre mais, mais do mesmo. Torna-se portanto, em crise, fixado mais na quantidade que na qualidade.
Encontramos, no sujeito bulímico, alguém fixado no objeto parcial que é a fonte de sua pulsão e objeto de seu autoerotismo. É o sujeito a serviço do objeto fonte da pulsão, tornando assim uma “perversão” da própria via pulsional.
A bulimia que é uma manifestação regressiva e representa a tentativa de restabelecer as relações de objeto no nível oral mais primitivo (...) no bulímico o traço fortemente ambivalente falta, e a bulimia apresenta uma atividade quase puramente erótica, um substituto de uma atividade sexual genital, e visa restabelecer uma relação erótica com o objeto. Poder-se-ia diser que esse sintoma aparece como um tipo de perversão sexual. ” (BRUSSET, 2003).
Importante ressaltar que, a perversão aqui indica não o sentido do senso comum, mas um destino sexual que vai além do objetivo do coito. Onde a pulsão sexual se desenvolve em zonas erógenas distintas dos genitais.
A pulsão é traumática por natureza. Não nascemos com mecanismos de defesa constituídos. Eles, na verdade, são construídos a partir da função materna. Se a mãe não foi capaz de libidinizar, sexualizar e narcisisar a criança que, pelo contrário, ficou marcada por desilusões precoces e traumáticas, o circuito de ligação da energia pulsional fica prejudicado. Com esta ausência ou falta de capacidade de uma maternagem que cumpra este papel, verifica-se um efeito traumático por representar justamente a deficiência desse escudo protetor que o protege também das sensações que lhe vêm do interior de seu próprio corpo. É essa ausência de proteção que, sendo traumática, pode desencadear a compulsão à repetição como uma tentativa última de reorganização pulsional. Essa não ligação das pulsões de vida e de morte, abre as condições de possibilidade para o surgimento, entre outros fenômenos, dos efeitos da ação do masoquismo em suas diversas dimensões.
Diante da falta de recurso de mecanismos psíquicos internos, o corpo é utilizado como recurso de contra-investimento do excesso pulsional como forma de expressão via passagem ao ato. Podemos, então, assumir que a bulimia constitui um modo de funcionamento adictivo com o objeto e daí o caráter avassalador e de submissão na relação do sujeito com o alimento.
Sem a possibilidade de um reconhecimento, um sentido para si e as próprias ações, que acarretam em um vazio interno e sensação de não existência. O sintoma torna-se uma tentativa de resgate de um sentimento de continuidade de si mesmo. A crise bulímica comporta, portanto, um caráter paradoxal. Ao mesmo tempo em que é uma manifestação que traz uma dimensão destrutiva, traumática, parece também constituir uma conduta de sobrevivência psíquica e de tentativa de proteção do objeto libidinal. Estaria aí envolvida uma ação significativa da pulsão de vida, vindo impor um certo limite à força destrutiva da pulsão de morte, à ação do traumático.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRUSSET, Bernard e outros. A bulimia: sobre um interessante complexo sintomático oral e sua relação com a adição. In: WULFF, Moshe. São Paulo: Escuta, 2003.
FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à metapsicologia freudiana, v.3. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
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